No que creio e tento viver.

Entendo que a verdadeira rendenção espiritual não tem entre os seus agraciados aquelas pessoas que posam de santas e moralmente irrepreensíveis, tampouco aquelas que investem a sua vida em defender a doutrina melhor fundamentada em escritos ancestrais... vejo que ela é alcançada pelo pecador arrependido que, por assim se reconhecer e ciente de sua limitação, ousa não mais negociar com Deus o Seu favor mediante seus esforços pessoais mas, em um passo de fé, acredita na bondade intrínseca de seu Ser e nos méritos do Cristo crucificado e ressurreto respondendo à essa fé com uma nova postura, voltada à Deus e ao próximo sem fanatismos, dando assim sabor à sua vida e a dos que estão à seu redor neste mundo. E tudo isso é possível exclusivamente pela Graça de Deus, fruto de Seu amor por nós.

sábado, 1 de agosto de 2009

No caminho com madre Teresa

No dia em que Deus começou a me tratar como adulta, a princípio estranhei.

Como fazem as crianças quando não entendem algo novo e surpreendente, por um tempo derramei lágrimas silenciosas, enquanto escutava sua doce voz de comando me dizendo que era hora de fazer o que eu tinha que fazer e, de preferência, que o fizesse rapidamente. Você sabe, enquadro-me naquele grupo de pessoas que o doutor Gregory House – o brilhante médico do seriado de televisão – define como o dos psicóticos. House costuma dizer que se você conversa com Deus, é um religioso, mas se Deus conversa com você, então você é um psicótico.

Eu perguntava para Deus, em meu coração, naquela manhã de domingo, sentada no banco de uma igreja batista, o que ele esperava de mim naquele momento específico da minha existência. Estava, de fato, pedindo por uma “palavra”, como fazem alguns cristãos quando estão diante de uma encruzilhada. Em geral, essas orações carregam uma expectativa padronizada: você tem um problema, ora com fé e crê que Deus lhe dará como resposta um verso bíblico contendo uma promessa de vitória. Ou, no mínimo, um atalho. Que lhe fará um afago, que lhe oferecerá seu colo imenso e confortável onde você quem sabe poderá deitar-se ou até mesmo enfiar a cabeça, feito um avestruz, enquanto espera a tormenta passar.

São orações que comumente vão dar no Salmo 27 (o Senhor é a minha luz e a minha salvação, a quem temerei?), ou então no 37 (agrada-te do Senhor e ele satisfará os desejos do teu coração) ou mesmo naquele manjado texto de Isaías 40 (os que esperam no Senhor renovam suas forças, sobem com asas como águias etc etc e etc). Sentenças maravilhosas que já nos consolaram a tantos, tantas vezes. A mim, pelo menos. Muitas vezes.

Um dia, porém, a coisa muda de figura. Você bate à porta do trono e pergunta: papai, o que esperas de mim? Numa atitude meio dissimulada, como se fosse possível manipular o pai, vai chegando de mansinho e pedindo, não uma luz, ou uma saída, mas apenas um conselho, ou, num jargão bem evangélico, uma “direção”. Aquela conversinha mansa, no fundo, esconde uma intenção. Você já tem em mente a resposta que gostaria de ouvir. Ela seria assim: filhinha, vem descansar no colo do papai. Ou: filhinha, segue neste teu caminho que o fim te será proveitoso. E não precisa se preocupar com nada, porque de tudo cuido eu. Você chega como não quer nada à espera de um Deus que em tudo conspire em seu favor. Que lhe aprove inclusive a indolência. Um Deus que faça de você, na verdade, o Deus dele.

De repente, inesperadamente, recebe em troca um empurrão carinhoso: “Sê sóbrio em todas as coisas, suportas as aflições, faze o trabalho de um evangelista, cumpre cabalmente o teu ministério” (II Timóteo 4:5). “O quê, Deus? Não escutei. Pode repetir?”

- Vai, minha filha, cumpre o teu ministério, anda. Você tem um deadline, esqueceu?

- Como? Tem certeza que é comigo que o Senhor está falando? Como assim, evangelista? Deve haver algum engano. Sou jor-na-lis-ta, lembra? Jornalista-evangelista é uma contradição em termos; o Senhor já entrou numa redação de jornal?

- Vai, Marília, anda... sabe o que quer dizer cabalmente?

Você corre para a nova versão internacional, para ver se ali o termo está diluído, se perdeu um pouco o peso da responsabilidade. “Cumpra plenamente o seu ministério.” Não melhorou muito.

“Mas, Senhor, eu me sinto tão cansada; eu me sinto tão desanimada; eu me sinto tão não-amada”

“Suporta as aflições.” Ou, na NVI, “suporte os sofrimentos”.

Quando Deus fala desse jeito com você, a princípio, você estranha. Ele não vai me livrar? Ele não vai me fazer sentir amada? Não vai aliviar o fardo? Não vai me mimar nem um pouquinho? Para que serve um Deus que não faz nada dessas coisas que se espera de um Deus decente?

Você vê, “suporta as aflições” é palavra para adultos. Você vai ter que passar por isso AO MESMO TEMPO EM QUE cumpre a tarefa que Deus te coloca nas mãos – não vai ter atalho desta vez, não vai ter ansiolítico, não vai ter dorflex. Vai ser com casca e tudo. Vai doer. A falta de amor vai continuar ali. A insegurança financeira. O cenário não vai mudar, pelo menos não no curto prazo humano. Cabe a você, desta vez, decidir se vai querer marchar, dadas as mesmas condições de pressão e temperatura.

No começo você estranha o tom porque estava acostumado com o Salmo 27 e seus equivalentes – com todo respeito ao Salmo 27 e a seu autor, que considero uma das figuras mais atraentes de toda a narrativa bíblica.

A voz do Senhor, quando chega amorosa e firme, acrescenta na vida da gente alguma coisa que estava faltando: foco. Mesmo assim, você resiste.

Mas, Senhor, e meu coração partido, o Senhor não vai consolar? Mas, Senhor, e este amor não correspondido, o Senhor não vai curar? Mas, Senhor, e esta enfermidade da alma, o Senhor não vai tirar? Como vou conseguir dar conta do recado se estiver me sentindo uma barata?

“Suporte o sofrimento.”

Mas...

Silêncio.

Você arregaça as mangas e começa a trabalhar. Passa um pouco de tempo, volta: toc toc toc...

“Pai? Tá tão difícil. Tem uma palavra para mim?”

“Quando passares pelas águas, eu serei contigo; quando passares pelos rios, eles não te submergirão; quando passares pelo fogo, não te queimarás, nem as chamas te arderão...” (Isaías 43: 2)

- Caramba, Senhor, quer dizer que é o fogo que me espera? É isso?

- Mas você não vai se queimar, filha..

- Mas o Senhor vai me deixar ser jogada na fogueira? (o tom aqui é de melodrama)

- Sim, minha filha. É o fogo que te espera. O negócio vai esquentar.

- Mas, pai, caramba...

Você virou adulto, percebe? Você não diz para uma criança que ela está bem perto de sentir o cheiro de um exótico churrasco. Nós, que somos maus, não faríamos isso.

Talvez por estar vivendo esse rito de passagem, eu não consiga tirar Teresa de minha cabeça.

Passei algumas semanas indo e voltando pelas páginas de Madre Teresa – venha, seja minha luz (Thomas Nelson Brasil). Trata-se da correspondência entre a santa de Calcutá e seus diretores espirituais, cartas espetaculares em que ela descreve o quanto sofreu desde que recebeu de Jesus Cristo uma missão – a de instalar-se entre os mais pobres dentre os pobres para ser a luz de Cristo nos “buracos” e favelas da Índia, no fim da década de 40.

São revelações extraordinárias, em que a madre descreve detalhadamente uma dor lancinante, de um peso de solidão tamanho que a fazia sentir-se totalmente abandonada por Deus, totalmente não-amada e preterida.

“[...] Por favor, reze especialmente por mim para que eu não estrague a obra Dele e para que Nosso Senhor Se mostre – pois há dentro de mim uma escuridão tão terrível, como se tudo estivesse morto. Tem sido assim mais ou menos desde o momento em que dei início à ‘obra’. Peça a Nosso Senhor que me dê coragem.” (pag. 159)

Ou então neste trecho:

“Não sei, mas há uma solidão tão profunda no meu coração que não posso expressá-la. [...] Por favor, reze por mim. “(pág. 167)

Quando comecei a ler aquilo, eu não conseguia entender. Não podia concordar com aquilo. Por que esta mulher sofria tanto, meu Deus? Ela foi escolhida por Ti, recebeu uma missão das mais elevadas – cuidar dos miseráveis, dos excluídos, dos famintos, levar Jesus aos aterros de lixo de Calcutá, poderá haver tarefa mais nobre? Minha mentalidade hollywoodiana não aprovava que esta missionária compassiva e dedicada se sentisse desamparada. O Senhor não estava ali com ela a fortalecê-la, recompensando-a por obedecer ao chamado? Não dava para engolir uma madre Teresa que não transbordasse de alegria por ser... bem, por ser a madre Teresa, entende? Não era justo, na minha visão cinematográfica, que ela não fosse recompensada em sua obediência ao menos com doses cavalares de alegria.

Como faço algumas vezes quando não consigo digerir as coisas espirituais, fui perguntar para quem é do ramo. Num email a meu pastor, pedi que ele me explicasse por que madre Teresa sofria daquele jeito se estava sendo obediente e cumprindo cabalmente o seu ministério.

Paciente, o pastor respondeu que a caminhada com o Senhor nem sempre é tão glamourosa para todo mundo. Ele me mostrou o verso de Isaías 45:15 “Verdadeiramente tu és um Deus que se esconde”, no qual fiquei meditando alguns dias. Erudito, ele concluiu o email com um recado: Deus, às vezes, é mais abscôndito do que gostaríamos.

O Aurélio diz que abscôndito quer dizer absconso – o que não ajuda muito. Mas se você segue para absconso, encontra ali a definição: escondido, oculto, esconso, coisa secreta; segredo. Um Deus que se envolve em sombras.

Minha impressão, depois de meditar nessas verdades é que, de tempos em tempos, o Senhor nos promove a um degrau maior de confiança e responsabilidade, estimulando-nos a acreditar que somos capazes de cumprir nossos pequenos chamados mesmo em meio à dor, à tristeza, à decepção e ao desamparo. Ele não se recusa a caminhar conosco no meio das chamas _ como fez com os amigos de Daniel – mas permite que sintamos o calor ardente do fogo aquecendo nossa pele até o limite.

No caso de madre Teresa, além do peso de ter de trabalhar num dos lugares mais desgraçados do planeta com um sorriso nos lábios, seu sofrimento, numa tese bem pessoal e totalmente intuitiva, deveria ter uma razão adicional. Para mim, Teresa sofria por amor.

É curioso notar como em dado momento, no livro, um de seus diretores espirituais é substituído por outro, sem muitas explicações. E o leitor é informado que algumas das cartas, em determinadas ocasiões, foram destruídas. Minha tese é que a madre, um ser humano imenso e vulnerável, apaixonou-se por um de seus confessores e, por sentir a sua falta, sofreu em silêncio a vida inteira. Mas talvez eu esteja assistindo muito ao seriado do doutor House.

Caso minha tese fosse verdadeira, a santa de Calcutá ficaria ainda mais parecida com Cristo. Aquele que conhece como ninguém o que é viver a dor de um amor não correspondido.

Marília Cesar, jornalista e escritora.

Fonte: Pavablog

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