Por Paulo Brabo
Um dos paradoxos que marcam o cristianismo histórico ocidental está em que, embora os protestantes sejam os grandes e credenciados defensores da graça, são os católicos – grandes e credenciados antagonistas dos protestantes – os únicos cristãos a desfrutar adequadamente dela.
Graça, como se sabe, é a palavra que usam certos autores do Novo Testamento para referir-se ao irredutível cavalheirismo de Deus, sua desconcertante postura de benevolência diante dos nossos maus tratos. Garantem-nos esses autores que é por graça, isto é, por cavalheirismo divino e não por mérito nosso, que dão certo as coisas que dão certo neste mundo. É por graça, e não por algum critério particular de seleção, que Deus derrama sol e chuva sobre justos e injustos; é por graça que as suas misericórdias renovam-se a cada manhã; é por graça, e não por teste de paternidade, que Deus chama-nos de filhos e concede que o chamemos de Pai; é por graça que Deus requer e oferece “setenta vezes sete” rotações de perdão por minuto; é por essa divina graciosidade, arremata o Apóstolo, que “somos salvos”.
Desde sempre a característica mais singular da graça foi essa mesmo, o fato de não podermos fazer coisa alguma para merecê-la. O cerne da “boa nova” cristã está em que não se pode extorquir de Deus aquilo que ele se dispõe a oferecer gratuitamente. Essa portentosa revelação transforma imediatamente em obsolescência e contravenção as mais consagradas práticas de chantagem contra a divindade, coisas como ofertas, sacrifícios e religião.
Curiosamente, os primeiros reformadores alicerçaram o seu discurso sobre essa precisa questão: a Igreja Católica, protestaram eles, havia perdido a graça de vista, construindo um império fundamentado na venda de privilégios e na institucionalização da manipulação divina. Os católicos haviam dado as costas ao coração da mensagem cristã, que garante não haver sacrificío que possa comprar o perdão ou penitência que possa pagar a culpa. Haviam reduzido o cristianismo a uma casca ritual desprovida de vida e vitalidade. Os católicos haviam se esquecido da graça, e os protestantes dedicaram suas vidas a corrigir este erro.
Parece no entanto inevitável que acabemos adquirindo as características daqueles que refutamos mais apaixonadamente. Nos últimos duzentos anos os católicos aprenderam a desfrutar gostosamente da graça, enquanto os protestantes se encarregaram de transformar o cristianismo numa casca ritual desprovida de vitalidade. Resta-nos o discurso, cabe-lhes a herança.
Os católicos crêem que sua Igreja não é contida por templo algum.
Ao contrário dos protestantes e em conformidade com a postura geral de Jesus, os católicos tendem a enxergar o mundo como um lugar eminentemente seguro. Para os católicos nada neste mundo tem como dar errado, realmente errado – e não pelo fato de haver templos católicos em todo lugar (coisa que os protestantes parecem ver como a principal vantagem dos seus antagonistas), mas justamente por crerem, intuitivamente, que a sua Igreja não é contida por templo algum. Os católicos enxergam a Igreja não como um lugar, mas como uma condição inescapável de segurança, algo muito semelhante ao que Jesus descrevia como sendo o reino de Deus.
Como a Igreja está em todo lugar, Deus está em todo lugar e também o serviço cristão. Ao contrário de nós, os católicos vão à missa e não “à igreja”, porque a Igreja é terreno santo e onipresente do qual não há como escapar. Deus estando em todo lugar, sua proteção é imediatamente acessível, seu poder é inevitável, seu favor é onipresente. Deus e a vida podem ser celebrados adequadamente aqui mesmo, fora das portas do templo, porque não há como fugir da esmagadora segurança da Igreja, que é em ínumeros sentidos outro nome para o seu reino.
Antes de concluir o seu curso preparatório, Dietrich Bonhoeffer, o teólogo alemão que apregoou o fim da religião e morreu num campo de concentração pelo seu envolvimento numa conspiração para assassinar Hitler, visitou Roma e o Vaticano. Ele esperava encontrar-se com a história, mas foi a vitalidade do catolicismo que causou-lhe verdadeiro impacto. O teólogo nunca permitiu-se esquecer a experiência, e menciona em inúmeros sermões e reflexões a integralidade e a universalidade que testemunhou na vivência católica da igreja:
Há uma palavra que, quando ouvida por um coração católico, acende todos os seus sentimentos de amor e de bem-aventurança; ela põe em movimento as emoções mais profundas de sua sensibilidade religiosa, do pavor e assombro do Juízo Final à doçura da presença de Deus; essa palavra desperta nele os sentimentos mais ternamente domésticos, sentimentos como os que só uma criança pode nutrir com relação à sua mãe: gratidão, reverência e amor sincero; o sentimento que toma conta de uma pessoa quando, depois de uma longa ausência, retorna ao lar, o lar de sua infância.
E existe uma palavra que entre os protestantes soa como algo infinitamente lugar-comum, algo mais ou menos indiferente ou supérfluo, que não faz o coração bater mais forte; que associam a uma sensação de tédio ou fastio ou que, de qualquer modo, não dá asas à nossa sensibilidade religiosa – e no entanto nossa sorte está traçada se não formos capazes de conseguir para ela um significado novo ou um muito antigo. Ai de nós se essa palavra não se tornar relevante novamente, se não tornar-se assunto de importância nas nossas vidas.
Isso mesmo, “igreja” é a palavra cujo significado esquecemos.
E por igreja Bonhoeffer quer dizer a comunidade da graça, a reunião informal e universal dos que se sentem ao mesmo tempo infinitamente seguros e infinitamente desafiados pela incessante credencial divina.
Para o protestante a igreja é um local e uma tarefa.
E sim, os católicos tem as suas novenas, suas velas, suas promessas e seus sacrifícios, mas recorrem a eles e deixam-nos lá, em paz; partem para as suas casas e vivem as suas vidas como gente normal, confiados na improvável graça como um cristão deveria fazer. Não vêem a necessidade, como nós protestantes, de reacenderem seus sacrifícios incessantemente, domingo após domingo após domingo pela eternidade; não vêem a necessidade de dar evidência do seu mérito pela atividade incessante, pelo acúmulo insano de conhecimento e pelos ajuntamentos febris. Os católicos têm as suas repetições, mas podem recorrer a elas em oculto, na privacidade das suas casas. Têm as suas imagens, mas não se rebaixam com a mesma facilidade ou as mesmas desculpas à ganância, que é idolatria. Têm os seus santos, mas preferem beijá-los do que sustentá-los com dinheiro. Tem as suas penitências, mas conhecem o arrependimento. Tem as suas peregrinações, mas não se rebaixam ao espírito de rebanho – isto é, não seguem todos para um mesmo lugar.
Tudo isso em sonoro contraste conosco, que cometemos a impudícia de, sendo os mais carolas e religiosos, sermos os que mais tagarelam sobre a graça. Para nós a igreja é um local e uma tarefa; para o católico é uma segurança e um estado de espírito. Para nós a graça é um conceito importante; para um católico, é estar vivo.
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