Escrever sobre a teologia da prosperidade me deixou desconfortável e inquieto; não por achar o assunto irrelevante ou meu próprio tratamento dele impertinente, mas pela intuição de alguma contradição oculta que demorei quatro ou cinco dias para saber precisar.
A primeira coisa que me inquietou, e disso eu tinha consciência mesmo enquanto escrevia contra ela, foi ver o quanto a teologia da prosperidade é fácil de refutar. O testemunho da Bíblia como um todo e do Novo Testamento em particular pesam irresistivelmente contra todos os pressupostos dessa doutrina e contra todas as suas conclusões, com uma ênfase que espero ter sido capaz de pelo menos sugerir.
Mais difícil, e tenho pensado nisso nesses últimos dias, é explicar de que modo uma doutrina tão desconcertantemente contrária ao espírito cristão (e uso a expressão no sentido de “espírito de Jesus”) alcançou a popularidade que alcançou dentro de tantas facções da igreja formal. Nada é mais avesso à postura do Filho do Homem, como apresentado nos evangelhos, do que a ganância proposta por homens, justificada em nome de Deus e usada como ferramenta de manipulação.
Já foi observado que a teologia da prosperidade é manifestação de um cristianismo estelionatário populista; tudo nela foi projetado para atingir, manipular e defraudar as camadas mais pobres da população com a promessa de riqueza. Todos querem ficar ricos, mas em geral são os pobres ingênuos o bastante para comprar a promessa da riqueza incondicional – e parecem tornar-se especialmente vulneráveis à aquisição se a promessa vem embalada e adoçada com o discurso da devoção.
O que em geral deixamos de enxergar é que a teologia da prosperidade é apenas a versão menos sofisticada – e portanto mais honesta – de uma ideologia tão entranhada na postura da igreja ocidental que tornou-se em muitos sentidos indistinguível dela. Porque, numa igreja absolutamente rendida aos ideais do liberalismo econômico, todos querem ser ricos e não veem nada de errado nisso. Se de um lado as vítimas pobres da teologia da prosperidade perseguem a riqueza crendo que ela virá sem escalas da mão divina, os ricos e burgueses perseguem precisamente a mesma riqueza – apenas recusam-se a rebaixar-se à ilusão ou à fé de que ela virá de Deus e não de sua própria performance.
Nós que condenamos a imaturidade do mecanismo toma-lá-dá-cá da teologia da prosperidade buscamos sem cessar o mesmo resultado por outros meios. A maioria de nós nem perde o seu tempo associando a riqueza a Deus; estamos ocupados demais perseguindo uma e ignorando o outro. Da expressão “teologia da prosperidade” os mais articulados dentre nós sentem-se preparados para invalidar a parte da teologia, mas nosso modo de vida endossa sem equívoco a parte da prosperidade.
Dito de outra forma, a teologia da prosperidade só alcançou penetração entre os pobres porque a ideia subjacente – de que para um cristão ser rico é coisa honrosa, desejável e reverte em glória a Deus – estava há muito (digamos, desde a Reforma) presente na postura e nos discursos dos cristãos ricos e de classe média. Com nosso modo de vida fornecemos o fim; a teologia da prosperidade limita-se a vender os meios.
Porque não há como esconder: grosso modo, há duas posturas na relação do ser humano com a riqueza. A primeira é acumulativa, e pressupõe isolamento e escassez; a segunda é distributiva, e pressupõe comunhão e abundância. Se enxergamos com clareza a mesquinharia dos que seguem e propõem a teologia da prosperidade, não temos como negar que nossa postura é pelo menos tão acumulativa quanto a deles. Os cristãos mais ricos fornecem o modelo elitista e dinheirista que a teologia da prosperidade vem oferecer aos mais pobres.
Em conformidade com isso, há duas maneiras de se ler o Novo Testamento; a primeira finge encontrar nele justificativa para o modo acumulativo de viver e de lidar com a riqueza. Sua modalidade mais comum enfatiza a sabedoria e a soberania de Deus. Quem é rico, sustenta essa visão de mundo, não deve absolutamente sentir-se culpado por não participar da miséria do mundo; ao contrário, quem acontece de estar rico foi agraciado pelo favor insondável de Deus e incorre em grave erro se sentir-se inclinado a repartir o que tem. A tentação de abrir mão dos privilégios da riqueza equivale à tentação de resistir à vontade de Deus.
Segundo essa linha de pensamento, nenhum privilégio é injusto, porque são todos patrocinados pela soberania divina. Em vista disso, não cabe aos ricos assumir uma postura distributiva em relação à riqueza1, porque isso denotaria falta de fé na divina capacidade de transformar o mal em bem. Não sabemos os motivos da miséria do mundo, mas não devemos duvidar da bondade divina. É portanto por razões de devoção e fé, sustentam esses proponentes da prosperidade calvinista, que é necessário abrir mão de qualquer tentativa de corrigir o mundo. Mudar o mundo é, na verdade, rebeldia contra a divindade. Talvez pareça injusto que você seja rico e o seu próximo pobre, mas quem é você para julgar? Quem é você para questionar a soberania divina, que estabeleceu a distinção em primeiro lugar?
Em absoluto contraste com esse pensamento, o modo genuíno de se ler o Novo Testamento é encontrando nele um apelo constante e incontornável para que abracemos um modo distributivo de lidar com a riqueza. Assim falaram os profetas antes dele (“reparta o seu pão com o faminto, e cubra ao nu com vestido”), assim falou João Batista (“quem tiver duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma”), assim falou Jesus (“tive fome e não me destes de comer”), assim fizeram os pioneiros do reino no livro de Atos (“tinham tudo em comum; e vendiam suas propriedades e bens e os repartiam por todos, segundo a necessidade de cada um”). Em cada caso e em todos os casos, a posição neo-testamentária com relação à riqueza é distributiva; que no Novo Testamento essa distribuição seja voluntária apenas contribui para confirmar a sua centralidade.
Semelhantemente, no Novo Testamento o impulso de reformar a sociedade não é jamais visto como rebeldia contra a vontade de Deus. Ao contrário; como vimos há pouco, o sentido mais essencial de “arrependimento” em Lucas/Atos é o de abraçar a vocação de mudar o mundo, no sentido de corrigir suas injustiças e anular os seus mecanismos de exclusão e de manipulação. A vocação do reino está em que somos enviados para corrigir a miséria do mundo com a mesma paixão que Jesus mostrou-se disposto a corrigir a nossa: esvaziando-se, repartindo-se, distribuindo-se – de modo a estar sempre conosco na mesa universal. Nossa conformidade com o espírito de Jesus corresponde rigorosamente à nossa disposição em seguir o trajeto dele em direção à generosidade e à pobreza. O Apóstolo disse-o da seguinte forma:
Vocês, que destacam-se em tudo, vejam que passem também a destacar-se na generosidade. Pois vocês conhecem a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, por amor de vocês se fez pobre, para que pela sua pobreza fossem enriquecidos.
O que encontramos nesse “enriquecidos” diz absolutamente tudo sobre nós.
Paulo Brabo
No que creio e tento viver.
Entendo que a verdadeira rendenção espiritual não tem entre os seus agraciados aquelas pessoas que posam de santas e moralmente irrepreensíveis, tampouco aquelas que investem a sua vida em defender a doutrina melhor fundamentada em escritos ancestrais... vejo que ela é alcançada pelo pecador arrependido que, por assim se reconhecer e ciente de sua limitação, ousa não mais negociar com Deus o Seu favor mediante seus esforços pessoais mas, em um passo de fé, acredita na bondade intrínseca de seu Ser e nos méritos do Cristo crucificado e ressurreto respondendo à essa fé com uma nova postura, voltada à Deus e ao próximo sem fanatismos, dando assim sabor à sua vida e a dos que estão à seu redor neste mundo. E tudo isso é possível exclusivamente pela Graça de Deus, fruto de Seu amor por nós.
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